O poder do medo ou o poder da confiança ?

Depois de uma temporada juvenil idílica, comecei a observar melhor as relações de poder existentes na cidade. Na verdade desde sempre tentei evitar acreditar no dado empírico da teoria sociológica (explícita em diversos estudos sobre realidades locais), que evidencia a existência de uma capacidade de pressão do poder executivo municipal sobre o tecido associativo, através de uma lógica de tutela que tende a manter as associações «numa direcção rotineira e conformista» (Silva:132)1.

E, não queria acreditar porque remetia esse tipo de relações «marcadas pelo jogo entre entre a lealdade e o subsídio» (idem) para uma forma antiga e desactualizada do agir político. Contudo ainda hoje (em 2009), alguns dirigentes e ex-dirigentes associativos me lembram repetidamente que o conformismo e a fraca independência são o preço a pagar por quem recebe apoios ou financiamentos públicos municipais. Como se essa situação fosse um eterno e transcendente status quo.

Este é um daqueles fenómenos sociais fortemente incrustados nas realidades locais. O problema de fundo é a lenta domesticação da sociedade civil pelo poder administrativo/executivo, cujo efeito se reflecte na anestesia social e numa vivência urbana abaixo das potencialidades efectivas dos actores sociais.

Por outro lado, este assunto quase-tabu tem outras dimensões, podendo-se mesmo afirmar que de um modo geral os portugueses têm «muito ou algum receio em de exprimir publicamente uma opinião contrária à das autoridades políticas» (Cabral:17)2.

A violência simbólica é uma forma de dominação invisível e quase inconsciente. Como uma espécie de vírus que se incorpora lentamente nos corpos sociais e individuais, levando-os à auto-censura. O que significa que é antes mesmo de agirem que os agentes sociais já estão inoculados por uma ideologia pré-estabelecida. Esta forma de violência silenciosa é o que torna possível o consenso prévio sem discussão construtiva, e uma ordem social congelada nas suas habituais hierarquias de dominação. Historicamente sabe-se que o Estado sempre instrumentalizou a Cultura para uniformizar e controlar os povos. O auge desta manipulação dá-se com os Totalitarismos do século 20.

Desde há algum anos que comecei a vislumbrar a existência factual deste “poder do medo”, entre aspas porque o uso da palavra “medo” é muito relativo, podendo significar concordância, subserviência, expectativas de emprego, inépcia, obediência, lealdade, inércia, ignorância, etc.

Vejamos alguns casos ocorridos nos últimos anos, e que em minha opinião revelam esta tradição “maniqueísta”:

i) Como foi possível que durante as eleições de 2005, o então candidato à presidência da câmara municipal pelo PS tenha “forçado” e aceite que dois dirigentes de uma instituição cultural de direito privado (da qual era ou fora presidente da assembleia geral) gravassem um vídeo de apoio à sua candidatura no interior da sede daquela instituição? Criando deste modo um incidente grave no interior da mesma, gerando desconfianças e mal entendidos. Pois nenhum associado pode aceitar de ânimo leve que a direcção da organização a que pertence assuma favoritismos partidários ou religiosos (conforme regulamento estatutário). Qualquer estagiário em advocacia sabe isto, e sabe que é abuso de poder e instrumentalização de organizações sociais para fins individuais e alheios à sua missão. Alguém se manifestou publicamente contra tal instrumentalização politico-partidária para fins eleitoralistas?

Que leitura se pode fazer do silêncio geral e da ausência de opinião pública crítica (e publicada) em torno de questões culturais? Será que não há matéria, temas ou problemáticas públicas relevantes?

ii) O Museu Municipal Leonel Trindade mergulhou numa espiral de incongruência, sem que se saiba actualmente qual a sua vocação museológica. Por respeito à figura tutelar do arqueólogo e homem de cultura que foi Leonel Trindade, ninguém tem nada a dizer, nada a perguntar? Estranho, e grave...

iii) Enquanto vereador da cultura, o actual presidente da câmara pretendeu fazer programação de cinema no Teatro-Cine, anunciando-se essa mesma tarefa publicamente no website da autarquia. Essa motivação anti-constitucional (o Estado não pode programar a cultura) foi criticada por algum dirigente associativo da área da cultura?










iv) Um gabinete de arquitectura propriedade de uma ex-vereadora do urbanismo oferece, num acto de generosidade sem precedentes, um projecto de arquitectura para um “Centro Interpretativo das Linhas de Torres”. Alguém se pergunta qual o programa museológico que fundamenta a existência do mesmo? Que funções estão afectas a que áreas funcionais? E que visão estratégica existe para o património cultural material e imaterial do concelho: arqueológico, industrial, edificado, paisagístico, sonoro, etc.? Algum arquitecto veio a público contestar a forma pouco ortodoxa como o edil aceitou e aprovou a oferenda, contrariando a promessa eleitoral de promover um concurso internacional?

No meu entender este silêncio civil relativo a problemáticas públicas de dimensão social, ou esta ausência de intervenção crítica pública não é compatível com a necessária responsabilidade colectiva por parte dos cidadãos ou de grupos de cidadãos, e particularmente daqueles que são os interessados nas matérias em causa.

Um dos efeitos a longo prazo desta passividade acaba por ser o fortalecimento de uma postura conservadora que privilegia a existência de um poder local paternalista, e de um «recalcamento da participação dos cidadãos nos assuntos da coisa pública» (Ribeiro:188).

Este fenómeno de controle social atinge, por vezes, os indivíduos marcados pela mão invisível do poder, chegando-se ao extremo de impedir pessoas de colaborarem com as instituições públicas. Instituições que, note-se, são dos cidadãos da república (res-publica, coisa pública) e não propriedade dos partidos ou de uma qualquer monarquia imaginária.

Será que ainda vivemos numa idade das trevas? ....num obscurantismo tribal? Em que o chefe manda e o povo silenciosamente obedece? Numa aldeia perdida no tempo, em que a solidariedade é falsificada pelo silêncio do pensamento único?

Seja qual for a resposta, uma coisa é certa, a Cultura sempre foi uma capacidade de criar imaginários, de reinvenção colectiva e individual, de libertação de padrões e ideias consensuais, de auto-consciência e autonomia responsável. O problema é que nada disto é “natural” e dado como facto garantido à nascença, basta observar a História universal, as ditaduras, as revoluções, as lutas de classe ou a luta pelos direitos humanos.

Desde a antiga Grécia, os cidadãos só optaram por escolher a cidade e a justiça porque preferiram estar sob a alçada das leis e do direito, em vez de sob a violência do todos contra todos ou da vontade absolutista do soberano. A partir desse momento, a cidade é uma construção activa dos cidadãos, e não uma abstracção gerida por uma Câmara Municipal.

Uma cidade é um organismo vivo, repleta de diversas formas de vida humana e animal, de idosos e de crianças, de brancos e negros e amarelos, de corujas e de árvores. E não um traçado de vias áridas perpendiculares por onde circulam autómatos e veículos poluidores.

Na verdade, outro mundo é possível. Outra cidade e outra realidade social só são possíveis se houver uma liderança política que fomente a confiança e a cidadania, exerça a transparência e limite o uso do poder à esfera pública da democracia.

O poder da confiança é o poder que cria as condições para que todas as pessoas possam «participar livremente da vida cultural da comunidade» (Artº 27 – Declaração dos Direitos humanos). O poder da confiança gera abertura à diferença, gera vontade de participar na vida social sem receio de beliscar as ideias e as problemáticas “oficiais” da cidade, que por sinal têm sido escassas e pouco têm contribuído para um futuro mais vibrante e profundamente humano ao qual todos nós aspiramos.

É que, sejamos sinceros, há formas de fazer política perfeitamente ultrapassadas.

E, como bem se sabe, as aparências iludem.


1SILVA, Augusto Santos (2000). Cultura e Desenvolvimento:Estudos sobre a Relação entre Ser e Agir. Oeiras. Celta Editora.

2CABRAL, Manuel Villaverde (2001). Democracia e Participação Política. Em revista Con(m)textos de Sociologia nº1, p. 13-17. Associação Portuguesa de Sociologia.

Políticas Culturais

A existência de políticas culturais deve-se essencialmente ao facto de se considerar a “cultura” como um bem público ou um capital (um valor) que deve ser cuidado pelo colectivo social, e sob a sua estrutura política que é o Estado democrático. Assim, uma politica cultural será uma função da administração pública cuja competência essencial é a de cuidar da cultura. Tal como uma política ambiental serve para cuidar do ambiente.

Nalguns casos esta função é óbvia, pois quem mais poderia proteger o património cultural senão o Estado? O grande desafio é então o de delimitar o significado de “cultura”, qual o seu âmbito? Quais as suas dimensões integrantes? Que relações estabelece com a cidade, com o poder político e com os cidadãos?

Cultura, cidade e sociedade são dimensões em constante interdependência. Não há cidade, nem sociedade sem cultura(s) - sempre no plural.

Uma das ambiguidades inerentes ao termo “política cultural” é poder pensar-se que equivale a uma administração da cultura, no sentido em que se produz e administra um determinado bem. Por isso, não podemos deixar de sublinhar que a administração pública, o Estado, ou qualquer forma de governo político-administrativo não produz, nem deve produzir cultura. Pode e deve apenas operar estrategicamente nas outras esferas que não as da produção (criação): distribuição, acesso, democratização, legislação, salvaguarda, desenvolvimento, sustentabilidade, etc.

Isto significa que só com um forte pensamento estratégico se pode e deve encarar a dimensão cultural da política e da cidade. Ou seja, medidas avulsas e euforias pessoais não chegam para elaborar uma política cultural.

Nenhuma política cultural se desenvolve no vazio, nem a partir do vazio. As cidades têm um passado, um presente e um futuro, têm ideias, têm imaginários, têm pessoas e grupos com identidades culturais variadas. As cidades são isso mesmo, a materialização das ideias ao longo do tempo, em ambientes mais ou menos criativos. Assim se afirma que as cidades são um produto das suas culturas (sempre no plural: culturas), do debate das suas ideias e dos seus valores humanos.