O Centro de Artes do Carnaval

Retomando a linha cronológica: a ideia de um «Museu do Carnaval» estava já consignada no Plano Estratégico da Cidade – 1994 (PEC). O problema é que o PEC no seu horizonte temporal se encontra já desactualizado não tendo sido entretanto revisto e já lá vão quinze anos. Aliás nenhuma das acções propostas para o sector cultural foi executada, porquê agora o Museu do Carnaval?

Quem aceitaria hoje o lema inscrito no PEC que nos remete para uma “Torres Vedras cidade da alegria e da boa disposição”? Para além de ser difícil confirmar esta proposição no quotidiano actual da cidade e por diversas razões, o exercício faz parte de um pensamento já obsoleto, porque visa a criação de cidades monotemáticas: cidade das artes, cidade da alegria, cidade do humor, etc. Desde 1994, o próprio Carnaval em si mesmo veio paulatinamente sofrendo alterações e é hoje muito mais um produto turístico e mediático, do que propriamente uma apropriação da cultura popular, se é que alguma vez o foi.

Este processo de objectitificação da cultura e da memória colectivas, isto é a transformação da cultura em mercadoria de consumo imediato (equiparável portanto à famosa Chiclete), coincide com políticas (despolitizadas) instruídas no sentido de desviar as comunidades, os grupos, ou os indivíduos dos efeitos emancipatórios das práticas carnavalescas ancoradas numa imagem do mundo ao avesso – onde, entre outros aspectos, o rei do entrudo toma o lugar do presidente da câmara eleito, e durante alguns dias deixam os cidadãos de estar simbolicamente sujeitos à lei oficial, abrindo assim uma brecha temporal subversiva face ao poder político local.

Mais concretamente, o que aconteceu e continua a acontecer (veja-se o episódio ridiculamente estranho e lúgubre do “caso magalhães” no último Carnaval) é a valorização e a procura de uma visibilidade externa a todo o custo e encenada, em detrimento de um protagonismo sustentável e de uma activação endógena (e não mera instrumentalização) dos diversos actores sociais e em especial das organizações colectivas. Não será urgente e primordial reflectir-mos primeiro sobre o Carnaval que temos e o que queremos? Porque não criar no Museu Municipal Leonel Trindade um núcleo sobre o Carnaval, em vez de criar um novo equipamento dedicado exclusivamente a um evento turístico-mediático?

O que está em causa na requalificação do antigo Matadouro e da sua transformação em Centro de Artes do Carnaval, integrado no âmbito do programa POLIS, é haver uma decisão política condicionada por um documento fora de prazo (PEC,1994). Deste modo, estamos a construir um futuro que nasce contaminado pela falta de actualização de um projecto de cidade, designadamente quanto à sua dimensão cultural e simbólica. Qual a pertinência de um Centro de Artes do Carnaval? Quem estará interessado a criar ou a expressar-se artisticamente sob os auspícios de um carnaval hegemónico, mercantilizado, controlado pelas rédeas de “turismo cultural” (da geração de receitas directas e induzidas através dos efeitos multiplicadores sobre outros sectores económicos ? ). Os inocentes alunos das escolas que serão obrigados vezes sem conta a carnavalizar-se (ainda mais) desde crianças, numa lógica de dominação simbólica, de reprodução cultural e colonização mental de um evento espúrio ? Qual o significado global de tudo isto se não houver rapidamente uma re-apropriação popular e heterodoxa do Carnaval?

Outra hipótese: e se a proposta para o matadouro fosse um outro tipo de equipamento, com uma ênfase laboratorial que permitisse o desenvolvimento da fileira das artes tecnológicas, da formação científica e da experimentação em novas tecnologias? Conjugando arte, ciência e tecnologia, ao mesmo tempo que se abria um novo horizonte de expectativas de futuro para os mais jovens. Um projecto que tivesse a ver com sangue novo, com sangue na guelra -até por razões simbólicas e pela memória do uso anterior- que celebre a criatividade humana na sua plenitude cultural e social, um local de fusão com uma forte politica de inclusão social, dedicando-se por isso a incluir os jovens “problemáticos”. Deste modo, o ponto de partida seria um diagnóstico concreto (ainda que subjectivo/pessoal): o da existência de um potencial criativo latente (artístico, cientifico e tecnológico) e da necessidade de fornecer meios e recursos que catalisam e aproveitem o talento das pessoas e da juventude em particular; bem como da presença de um público potencial ávido de propostas artísticas e de experiências sensoriais dignas do Séc. XXI.

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